Casa-Corpo
A minha casa deixava o ar entrar, fazia barulho quando eu andava e me acompanhava em meus sonhos. Fragmentos de imagens formam ondas que inundam meu peito. Esta é minha casa hoje: a memória de quando eu acreditava que tinha uma espaço meu no mundo.
Na minha casa o vento vinha me visitar. Me trazia notícia de outras terras, a voz perdida de quem passou a vida a esperar seu amor e o sussurro daqueles que não podiam berrar. O vento voava e abria espaços em mim. E eu dançava com ele, o vento, aquele que via o mundo. Lá eu podia rir, chorar, espernear, gritar, saborear — podia me libertar. Vem, vai, varre e leva com ele o que não precisa mais ficar.
Eu ia caminhado e a passos certos recebia respostas. A minha mansão de madeira, feita do tamanho necessário, respirava tanto quanto eu. Por vezes ela chegava a me assustar, quando estava quase dormindo e ela estalava com dores de crescimento. De pés descalços engatinhei, andei, corri e cresci com o frescor da madeira entre os dedos. Foi só porque a tinha que pude ir embora e alcançar muitas distâncias mundo afora. De coração aberto, e mesmo com medo, conheci várias culturas, pois sabia que acontecesse o que acontecesse, a minha casa estaria me esperando.
O tempo começou a correr cada vez mais rápido, e os sonhos passaram a se multiplicar. Eu me preparava para sair. Lá fora eu caía muito e me atrapalhava com o imprevisto, que às vezes roubava meu fôlego. Mas era sempre nela, em algum de seus cantinhos, que eu achava o meu sonho perdido flutuando. Não sei como e nem por que, mas sonhados dentro daquela casa eles não pareciam ser tão impossíveis assim. A estrada sim, essa sempre demonstrou ser longa, o que não significava que eu não teria fôlego para cruzá-la. Afinal, eu tinha não só um lugar meu, mas também um canto onde eu podia ser eu. Tendo ela como âncora, me permiti a voar o mais alto fisicamente possível. Quebrei as minha regras e até driblei as vozes dos meus pais que ressonam sem parar na minha cabeça. Tanto que as vezes nem conseguia escutar os pensamentos que eram meus. Viajei, conheci muitos lugares, viajei, conheci muitos éus’, viajei e me perdi. Quando era hora de pousar eu a tinha como um berço. Pude experimentar ser todas pois em minha casa eu tinha um espaço para me reencontrar. Pude mudar pois nela minhas memorias estavam sempre voando por ai. Em algum momento elas me achariam e me mantinham no meu lugar. Eu tinha um lugar meu no mundo.
Foi quase num piscar de olhos que ela se foi. A decisão se minha casa estaria na minha vida não pertencia a mim. Tropecei um tempo perambulando por ai sem um lugar meu, sem ter onde brindar. Chorei, rezei, voei sem ter onde pousar. Fui para muitos lugares buscar um sentido, sem bússola só perdi meu tempo. Esqueci de procurar em meu corpo-casa o porque de tanto amar. Agora, faço espaço no mundo a cada passo com meu corpo, minha única casa. Viajo sem viajar. Levando minha casa comigo, a cada dia encontro outro tipo de liberdade. Não voo mais para lugares estelares eu sou o lugar mais desconhecido conhecido por mim. Meu corpo, a casa, o canto da minha alma é meu maior pertence. Não tem jeito, tenho que cuidar bem da minha casa, sem ela minha alma apaga. Mesmo que esse cuidar sempre muda seu significado. Ele não é uma palavra que podemos achar no dicionário. Seria bom, mas sem graça, fácil demais. Em minha casa eu pouso. Nela posso ser todas sem medo, sem ter que me ofuscar em um canto para me aceitar. Posso me reencontrar em qualquer lugar a qualquer hora. Levanto-me, acordo e me dou um sacode e assim voo a cada dia me torno mais em um espaço meu no mundo.
Não sei mais se meus sonhos flutuam por lá. Também não sei mais se meus sonhos são sonhos ou se são sacos de areia que carrego diariamente. Aqueles meus sonhos coloridos, perdidos
Em algum canto da minha casa-corpo eu sei que posso achar sonhos flutuantes se o tempo me esperar. As vezes me lembro que perdi alguns pelo caminho. Mas e se ele correr? Onde vou buscar os sonhos coloridos que hoje são apenas imagens flutuando na minha memória?
Fazer espaço interno para eles (sonhos)
Nao estar mais vivendo no meu mundo, mas que mundos aparecem
Estar em casa é não desejar estar em outro lugar